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Arquitetos: Vão
- Área: 100 m²
- Ano: 2022
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Fotografias:Javier Agustin Rojas, Vão
Descrição enviada pela equipe de projeto. Os desafios projetuais da Casa São José do Barreiro não estiveram atrelados ao desenvolvimento de uma estrutura ousada, nem mesmo de um detalhamento técnico sofisticado. Tampouco o esforço maior deve ser creditado à manipulação do vento, ao direcionamento da luz natural e aos enquadramentos da paisagem – ainda que essas sejam estratégias fundamentais para a criação da sua espacialidade.
A questão que nesse caso exigiu de fato grande dedicação foi entender como o projeto lidaria com o seu contexto. Ou melhor, como a casa deveria se apresentar estando localizada no centro de uma pequena cidade [1] do Vale Histórico Paulista, na região da Serra da Bocaina. Sabia-se a priori que a relação não deveria se realizar através da tentativa de mimetizar o passado cristalizado no casario e nas ruas de paralelepípedo que permeiam a Praça da Igreja Matriz. No entanto intuía-se que, de alguma forma, a casa deveria estabelecer um vínculo com a atmosfera remota que paira na cidade desde a crise do ciclo do café [2].
Para entender a reverberação da história construída no projeto, foi imprescindível realizar um reconhecimento mais aproximado, não limitado apenas à usual visita ao terreno de intervenção. Do cotidiano apreendido na observação da vida na praça, nas visitas ao Cine Theatro São José [3] e à Fazenda Pau D’alho [4] e até mesmo nas conversas com os vizinhos, cujas famílias habitam a cidade há muitas gerações, nasceu o desejo de estabelecer um diálogo silencioso e subjetivo entre a casa e a cidade.
A segunda diretriz surgiu de uma questão mais pragmática: esta deveria ser uma casa possível. Possível de ser viabilizada dentro de um orçamento enxuto (R$ 1.000,00/m²). Possível também de ser construída por uma mão de obra inexperiente na leitura codificada dos desenhos arquitetônicos. Mas, acima de tudo, uma arquitetura possível e passível de incorporar os muitos conhecimentos construtivos tradicionais resguardados pelos construtores locais.
Havia ainda um terceiro patrimônio a ser considerado, não relacionado às construções e suas técnicas. Entre as casas justapostas, sem recuos laterais e frontais, o terreno apresentava-se como o único lote não construído da área central, onde um intervalo verde é avistado desde a calçada. As plantas ornamentais e frutíferas ali presentes, foram cultivadas pela mãe da cliente, exímia jardineira, na época em que o terreno era utilizado como o quintal da casa da família.
É curioso que, passados tantos anos, um pequeno manejo do solo fez ressurgir de forma espontânea algumas plantas do tempo da sua mãe, tais como: inhames, tinhorões, samambaias e antúrios. A manifestação da ancestralidade presente nos extratos de tempo dessa terra, herança vegetal e afetiva, determinou que esta seria uma casa pensada para um jardim. A inversão da lógica usual, onde o pensamento construtivo antecede o paisagístico (um jardim pensado para uma casa), concedeu ao projeto uma oportunidade de celebrar a vegetação.
A partir do portão e do muro pré-existentes que estabelecem o limite da rua em continuidade aos vizinhos, inicia-se um percurso de deleite. Sinuosamente ele conduz o corpo entre as plantas e revela aos olhos, pouco a pouco, vistas parciais da casa. Ao final, uma escada de pedra se insinua, convidando à um mergulho sob a passarela que emerge no vazio. É nesse momento de chegada ao nível da casa, entre os dois blocos construídos, que se pode perceber o enquadramento de uma imponente mangueira.
Para além da celebração simbólica representada pela mangueira, podemos afirmar que o vazio é a ação mais significativa do projeto. Não fosse a sua existência, que divide o programa em bloco social e bloco privativo, talvez pudéssemos dizer que a simplicidade da planta se assemelharia a uma típica casa popular do interior, própria da cultura caipira.
No vazio encontra-se também representado o desejo de conciliar tempos espaciais e suas expressões peculiares nas formas de habitar. Se por um lado as passarelas que o delimitam propõem um transitar nada tradicional, aberto às intempéries; por outro, o extenso banco de concreto nada mais é que uma releitura da atividade contemplativa tão característica nas ruas de São José do Barreiro. Todavia, é importante ressaltar ainda que a verdadeira síntese do projeto não está nos elementos construídos, mas na vista revelada para quem ali se senta: no badalar da torre do sino da igreja, na solidez construtiva dos casarões, nos telhados cerâmicos, na marcenaria robusta, no verde do jardim em primeiro plano e dos mares de morro ao fundo.
Notas:
- População estimada pelo IBGE em 2021: 4.141 pessoas.
- Na segunda metade do século XIX São José do Barreiro destacava-se como uma das maiores produtoras de café do mundo. Junto à outras cidades do Vale do Paraíba constituía uma das regiões mais ricas e desenvolvidas do país. Com a crise de 1929, e o declínio da cafeicultura, a região foi definitivamente esquecida pelos grandes interesses econômicos e seu modelo desenvolvimentista. “Ali tudo foi. Nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.” – escreveu Monteiro Lobato no livro As Cidades Mortas publicado em 1919, cujo título é contestado por alguns habitantes que reivindicam o reconhecimento da vida que ali existe.
- O Cine Theatro São José foi inaugurado em 1868 como símbolo do poder político e econômico dos barões do café. Em 1926 foi transformado em cinema, fechando as portas em 1958. Recentemente passou por anos de reforma e reinaugurou como espaço cultural voltado para encontros, ensaios e apresentações da população.
- A Fazenda Pau D’alho, tombada pelo Iphan na década de 60, constitui uma das primeiras instalações voltadas inteiramente para a produção do café. Sua casa sede foi projetada pelo escritório de Ramos de Azevedo em aproximadamente 1817. O conjunto avarandado, construído em taipa de pilão e embasamento de pedra, compreende também uma capela, duas edificações utilizadas como abrigo de tropeiros e uma senzala. No que se refere aos recursos do terreno apresenta uma excepcionalidade técnica como uso da roda d’água e bateria dos pilões. Além de ser uma das representações espaciais mais significativas do ciclo do café, Pau D’alho é um importante registro histórico do modelo escravocrata que tanto difere da tranquilidade observada hoje.